sábado, 22 de maio de 2010

Exércitos nas ruas

Pela primeira vez na história, a maioria da população mundial vive em cidades. Grande parte desta gente vive em condições de absoluta miséria. Um em cada três habitantes citadinos vive em bairros de lata, num total de quase mil milhões de pessoas, números com tendência para duplicar até 2030. Este processo é o corolário lógico dum modelo baseado na conquista de todos os recantos do planeta para a esfera de influência do capital, nomeadamente o financeiro, que estende à escala planetária a atracção e a repulsa da mão de obra. Assim, a sobrepopulação relativa é atraída ou rejeitada, de acordo com a concentração de capital nas diversas áreas do mundo.

Nos locais onde se concentra, tenta, por todos os meios, aumentar ao máximo a sua própria rentabilidade. Quando as condições não lhe são tão favoráveis, não se inibe em zelar para que se alterem. É o que se passa neste momento, em que a folia financeira conheceu alguns limites, o que, num mundo dividido entre capital e trabalho e baseado na necessidade de crescimento eterno, só pode significar que a corda parte do lado do segundo para a manutenção da prosperidade do primeiro.

E temos, assim, por um lado, massas enormes de pessoas a deslocarem-se à mercê das “necessidades do mercado”, rompendo com as suas terras e raízes e, por outro, a pressão para que todas as protecções sociais se evaporem. De forma a que sejamos todos apenas mais um do enorme exército de escravos que as altas finanças precisam para sobreviver. A expansão terminou e só o crescimento da miséria permite fazer face à situação.

Há mais de dez anos que o Banco Mundial tornou público que sabe que as coisas se processam desta maneira: “A pobreza urbana chegará a ser o problema mais importante e politicamente mais explosivo do próximo século” (documento de trabalho do grupo de investigação Finanças e Desenvolvimento, Banco Mundial, Janeiro 2000). Também já não escondem que o sonho da “prosperidade para todos” que nos venderam se revelara falso, a acreditar nas palavras do insuspeito Joseph E. Stiglitz, ex-chief economist e senior vice president do mesmíssimo Banco Mundial: “Apesar das repetidas promessas de reduzir a pobreza feitas nos últimos dez anos do século XX, o número efectivo de pessoas que vivem na pobreza aumentou quase cem milhões” ( Joseph E. Stiglitz, La globalizzazione e i suoi oppositori, Einaudi, Torino, 2003, p. 5).

Ao invés de pensarem em alterar o modelo para inverter a tendência, os seus responsáveis decidiram, como sempre, tratar de se protegerem das consequências. À esquerda e à direita, nos “países desenvolvidos” e nos “em desenvolvimento”, a simples presença duma força de trabalho sem rendimentos mas com as mesmas necessidades básicas de todas as outras pessoas é um pesadelo vivo. O medo provocado pelas reacções destes “fora do sistema” é imenso e provoca a mesma reacção securitária. Mais polícias, mais prisões, videovigilância, produção contínua de emergências, muros, torniquetes, registo biométrico, armas neutralizantes. Eis a resposta.

Quando o quadro se alarga, a panaceia revela-se global. A Nato, no seu relatório Urban Operations in the Year 2020 (elaborado pelo grupo de estudos SAS 30 – onde participam, desde 1998, experts do Canadá, Itália, França, Alemanha, Reino Unido, Holanda e Estados Unidos – e tornado público em 2003) reconhece que a tendência para que se produzam tensões ligadas à existência de bairros de lata e condições de pobreza “poderia crescer significativamente no futuro, conduzindo a possíveis sublevações, desordens civis e ameaças à segurança que imporão a intervenção das autoridades locais”.

O que está em jogo, então, é apenas a capacidade das forças militares administrarem situações de conflito assimétrico, onde o inimigo não é um exército regular, mas uma massa heterogénea de “irregulares”. Por outras palavras: na crescente periferia metropolitana, quanto mais o inimigo se torna interno, mais impossível se torna enfrentá-lo com os métodos tradicionais dos bombardeamentos e da destruição integral das cidades, uma vez que o bairro de lata fica mesmo ao lado do condomínio fechado que se pretende proteger.

É um passo lógico nesta guerra civil global que se vai desenrolando e adaptando às características de cada terreno particular. A realidade europeia não se pode comparar à do Afeganistão, Iraque ou Haiti, mas tomemos o exemplo de L'Áquila, cidade italiana vítima dum terramoto devastador, em 2009, para se ver que não estamos, afinal, assim tão distantes. Depois do sismo, a máquina militar entrou rapidamente em acção, ocupando o território e experimentando técnicas de guetização da população em campos de refugiados fechadíssimos, com regras internas tão severas como absurdas. Não era permitido cozinhar, nem utilizar a internet ou consumir excitantes (café, vinho, chocolates), nem reunir-se para debater. As pessoas foram transformadas em escravos de laboratório, depois de despojadas de tudo pela força da natureza e pelas más construções com origem na ganância dos construtores, os mesmos que, agora, lucram com a reconstrução. O Terceiro Mundo, como coisa distante, deixou de existir. O Terceiro Mundo é aqui.

Para os mais descrentes, recomenda-se a leitura do Anexo E do relatório Urban Operations in the Year 2020, onde se simula uma operação da Nato num teatro de operações no qual as “cidades de interesse estratégico” não são Teerão nem Cabul mas as francesas Rouen, Le Havre, Evreux e Dieppe.

O inimigo é cada vez menos um exército convencional e cada vez mais uma entidade informal de guerrilheiros urbanos, massas completamente desapossadas, formações “terroristas” e também grupos menos organizados como os que emergem em situações insurreccionais. O controlo preventivo e a repressão de sublevações ou insurreições serão cada vez mais uma prerrogativa dos exércitos, que passará a ter funções de verdadeira polícia territorial, ao mesmo tempo que esta se militariza.

É este o quadro de fundo da teoria do estado de guerra permanente que se tem vindo a definir nos últimos vinte anos, uma teoria que parece feita especificamente para levar a cabo uma guerra global de baixa intensidade contra as franjas mais desesperadas da humanidade, a ter lugar nas periferias esfomeadas, independentemente de onde se situem. É esta a base que sustém o novo conceito estratégico da Nato, que será assinado em Novembro, na cimeira da Aliança Atlântica que se realizará em Lisboa. Atente-se a duas citações do documento Análises e recomendações do grupo de experts sobre um novo conceito estratégico para a Nato:
Dado o carácter de mudança e de crescente variedade de perigos para os estados membros, os Aliados deveriam fazer um uso mais criativo e regular das consultas autorizadas pelo artigo 4 (o Artigo 4 diz que os aliados se devem consultar “quando, na opinião de qualquer um deles, a integridade territorial, a independência política ou a segurança de alguma das Partes está ameaçada”)
e
O conceito estratégico deverá incluir uma declaração clara de prioridades de defesa. Estas começam com a capacidade de defender o território da Aliança, mas incluem a capacidade de levar a cabo missões exigentes a uma distância estratégica, ajudar a moldar a paisagem de segurança internacional, e responder a contingências imprevistas quando e onde for necessário. O Nível de Ambição (Level of Ambition ) oficial da Nato foi criado em 2006; não há necessidade de modificar esse enquadramento, apesar da definição da missão poder ser alargada de forma a incluir novas exigências para a segurança interna.

“Uma das armas do capital consiste no facto da população, proletariado incluído, não imaginar até onde o Estado avançará com a guerra civil”, escrevia Jean Barrot no distante ano de 1972. A tomada de consciência do nível a que o Estado está disposto a chegar com a guerra civil, consciência que ilumina os olhos dos putos palestinianos que atiram pedras ao tanque ocupante e que incendeia as ruas gregas, continua a faltar por aqui, adormecidos que andamos pelo sonho do “agora é que vai ser” e acomodados pela moral do “esperemos que não me toque a mim”.

Retirado de: Indymedia Portugal

Nenhum comentário: