Na madrugada de quinta-feira dia 28 de Janeiro de 2010 levámos a cargo uma acção simbólica em defesa da linha e do vale do Tua. Os locais visados foram escolhidos pela sua quota-parte no processo plutocráctico que parece ter condenado em definitivo um património quer natural quer cultural. São eles a sede da EDP no Marquês de Pombal, a sede da REFER em Santa Apolónia, a sede da CP na Calçada do Duque, o Ministério do Ambiente e do Ordenamento do Território e o Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações.
A documentação textual e fotográfica desta acção pode ser consultada na página: http://caretoslisboa.blogspot.com
Ao destruir esta linha destruir-se-á uma infraestrutura de transporte energeticamente eficiente para construir uma barragem ineficiente. Destruir-se-á uma infraestrutura importante para a coesão social e fixação das populações. Destruir-se-á um potencial turístico e de desenvolvimento económico. Continua-se a represar e matar os rios e o povo de Trás-os-Montes, região que produz já metade de toda a energia hídrica em Portugal, e que continua a definhar económica e socialmente. Pelo desenvolvimento, pelo povo transmontano, contra a destruição da linha e do vale do Tua:
Caretos de Lisboa
Apresentamos no seguinte comunicado as razões para esta acção.
COMUNICADO
O que querem fazer é um crime! (Mário Soares, em visita à linha do Tua [RTP, 28/2/2008])
A linha do Tua é uma linha ferroviária de via estreita que atravessa a região de Trás-os-Montes e Alto Douro. A sua construção iniciou-se ainda no século XIX, ficando concluída em 1906 a ligação entre a linha do Douro e Bragança, a capital de distrito. Dos cerca de 134 km iniciais funcionam hoje apenas alguns parcos quilómetros, distribuídos por oito estações que servem a cidade de Mirandela. Desde a infame noite do roubo de 1992 que cortou a ligação a Bragança até aos sucessivos acidentes que têm vindo a adiar a circulação na restante linha, o futuro do único transporte ferroviário nesta região está em risco. Outra ameaça advém da construção da barragem da foz do Tua, inserida no Plano Nacional de Barragens com Elevado Potencial Hidroeléctrico (PNB). Outorgada à EDP, a conclusão do paredão da barragem ditaria em definitivo o fim da linha do Tua tal como a conhecemos, devido à submersão duma parte do seu troço e o seu consequente isolamento da rede ferroviária nacional.
As justificações avançadas para o fecho de vários troços da linha e para o avanço da barragem são várias e estão em última análise intimamente ligadas. A desconstrução de tais razões tem vindo a ser sucessivamente feita por alguns partidos com assento no parlamento, por movimentos cívicos e por algumas das autarquias afectadas e com a defesa concomitante da preservação da linha e do vale do Tua. Relembremos brevemente os pontos principais.
Quanto à barragem, refira-se que a da foz do Tua faz parte de um pacote de dez proposto pela legislatura anterior, cujo objectivo seria diminuir quer a libertação de gases de efeito de estufa, quer assegurar uma maior produção endógena de energia eléctrica. Um relatório recente encomendado pela Comissão Europeia faz eco das críticas lançadas por várias organizações ambientalistas: o PNB foi mal planeado por ignorar as exigências de qualidade do Plano Nacional da Água, os próprios Planos de Ordenamento das Bacias Hidrográficas e os efeitos de erosão costeira. Em termos energéticos, há também várias falácias. Em 2009, às oito hidroeléctricas licenciadas nesse ano corresponde um aumento da potência média de 130 MW, o que corresponde apenas a 2,2 GW do consumo nacional, valor que, surpreendentemente, iguala a procura anual de energia eléctrica. Este avultado investimento no PNB ainda se torna mais inexplicável se tivermos em conta que, em termos energéticos, a principal dependência do país respeita à importação de petróleo, o que não está de todo relacionado com a implementação de energias renováveis; o sector dos transportes rodoviários, em particular, era responsável por cerca de 33% da energia usada em Portugal em 2006 e é verosímil que essa percentagem continue a aumentar; há portanto uma profunda contradição entre o querer aumentar a proporção de energias renováveis enquanto se concedem subsídios ao sector automóvel, a par dos sucessivos investimentos de centenas de milhões de euros em auto-estradas. O próprio orçamento de estado de 2010 trata o investimento nas barragens numa lógica geradora de emprego mas não reporta nem a pouca especialização necessária para os mesmos, nem a sua duração estar ligada apenas ao tempo de feitura das obras, nem os custos a longo prazo que todas elas provocarão. Reina a propaganda alegre que se alimenta destas obras sem visão. Sem um plano de educação para a eficiência energética, as barragens vão apenas protelar o problema do aumento da intensidade energética do país enquanto delapidam recursos e valores irrecuperáveis.
Ao nível local, os absurdos da barragem da foz do Tua tornam-se ainda mais flagrantes. A localização prevista para o paredão situa-se apenas a um quilómetro do vale do Douro, património mundial da humanidade. Além de submergir e afectar a agricultura e a vitivinicultura locais através dos novos níveis de humidade, é certo que descaracterizará, completa e irreversivelmente, a beleza paisagística não só da afluência do Tua no Douro mas também do próprio vale do Tua. O Estudo de Impacte Ambiental, para além destes efeitos nefastos, menciona também o risco sísmico acrescido com a instalação da barragem e os efeitos negativos daí decorrentes para as economias locais e para o movimento e dinâmica das populações. A EDP, através de uma campanha de publicidade fraudulenta que contou com a vergonhosa conivência da TSF, tentou deturpar estes factos; sugeriu até que a barragem do Tua introduziria desenvolvimento, turismo e emprego. Se de facto as barragens acrescentassem algo ao desenvolvimento local, como explicar o paradoxo de mais de metade da produção hidroeléctrica nacional estar sedeada na região de Trás-os-Montes e daí não ter acrescido nenhuma riqueza local? A região é na verdade a mais pobre do país e uma das mais pobres da União Europeia. A lógica parece ser, uma outra vez, a de sacrificar ou suspender o desenvolvimento da região trasmontana em função do suposto benefício nacional, o que é, para as suas populações, um fado recorrente que as tem votado ao isolamento, à emigração, ao esquecimento.
No caso dos sucessivos fechos dos troços da linha do Tua, a REFER e a CP justificaram as amputações com razões relacionadas com a rentabilidade da linha e com as baixas taxas de utilização da mesma. Para lá de terem omitido desse critério a falta de coordenação com a linha do Douro, os horários desadequados às necessidades das populações e a ausência de publicidade turística aos reconhecidos méritos paisagísticos do vale do Tua, ficou por dizer que um linha será tão mais atractiva quanto mais investimento for nela feito. O que não impediu que em 2006 cerca de 42000 turistas a tenham visitado. A falta de manutenção da linha e das carruagens é tão crónica que a última renovação dos carris e do balastro remonta a 1991. Se as taxas de utilização e respectiva rentabilidade fossem o único critério para decidir a viabilidade de um empreendimento de uma empresa pública, quer o metro do Porto, quer a Carris teriam de fechar portas, dado não cumprirem tais requisitos e serem, tal como a CP e a REFER, empresas públicas com enormes dívidas.
O que deve ser sublinhado e constituir-se como critério fundamental de avaliação da conservação da linha é a coesão regional e social introduzida por tal transporte público. A acessibilidade a transportes e a quantidade de movimentos por eles proporcionados têm influências imediatas na fixação das populações e nas possibilidades reais de trocas de bens e serviços. Num concelho que enfrenta problemas graves de envelhecimento e desertificação, a preservação da linha do Tua é um elemento capital para a sua revitalização. O corte da ligação ferroviária a Bragança em 1992 provocou a perda de capital humano e desfalcou ainda mais o concelho; o discurso político de então prometia o desenvolvimento, numa lógica excludente da ferrovia, através das estradas do IP2 e do IP4; dezoito anos mais tarde, é o mesmo argumento que pretende salvaguardar o desenvolvimento da região através do prolongamento da A4; a complementaridade com a ferrovia não é sequer contemplada, apesar de ter sido durante décadas a única via de comunicação responsável pela ligação do concelho ao litoral e por ter introduzido mais vida no concelho.
Esta estratégia de negligência e abandono da linha do Tua enquadra-se noutra mais geral levada a cabo pelas empresas públicas responsáveis pela danosa administração e gestão da rede ferroviária nacional, com o beneplácito dos vários governos. Não se compreende de todo a parcialidade com que é preterido um transporte eficiente e estruturante em favor de auto-estradas cada vez mais supérfluas, quando no mínimo ambas as modalidades de transporte terrestre deveriam ser complementares. Para o caso do Tua, esta estratégia é ainda mais absurda dado o reconhecido potencial turístico da linha e da região. A linha do Tua está ligada ao Douro – um pólo turístico fundamental, segundo o Plano Estratégico do Turismo – e já em 2012, Bragança estará a 30km de Puebla de Sanabria, uma cidade espanhola com TGV; outra ligação a Espanha por Barca de Alva é também uma concreta possibilidade. Para além de ser um elemento dinamizador das actividades económicas locais, as ligações ferroviárias permitiriam que o turismo vingasse. Á semelhança do que foi feito na própria Espanha, a preservação das vias estreitas representa uma aposta no turismo da natureza e na preservação activa do mundo rural. O desaparecimento da linha e do vale do Tua seria uma calamidade porque significaria precisamente a destruição de uma memória viva, de uma paisagem em que a obra humana está profundamente imbricada na envolvente natural e em que uma não é distinguível da outra. É de facto todo um património que testemunha a possibilidade real de haver construções humanas que não desvirtuam mas até completam a natureza, ao convidarem o homem a nela demorar-se. Quando uma grande parte do Portugal turístico é assolada pela convivência de um urbanismo duvidoso com as respectivas paisagens naturais, é gratificante saber que há ainda valores paisagísticos e produtos genuínos que teimosamente persistem em repontar numa região cronicamente esquecida. É imperioso não ceder ao perigo de transformarmos o vale do Tua e as suas gentes, tal como muitas outras regiões portuguesas, numa memória das gestas de outrora a serem futuramente admiradas num museu, em terras estranhas ao próprio território português de onde assomaram.
Nada do que ficou dito é novidade. Estes argumentos são por demais conhecidos e têm vindo a fazer parte do possível debate entre os proponentes da barragem e os defensores do rio, da linha e da região. Recorde-se a anormal celeridade com que decorreu a concessão à EDP e o silêncio cúmplice das autoridades no que respeita aos acidentes decorridos na linha. Perante a relevância inequívoca dos argumentos, a intenção da EDP e do actual governo levarem a cabo a execução da barragem é nada mais que um autêntico sintoma do pueril sistema democrático do Portugal contemporâneo. O esquecimento do interior, a ridicularização da questão por parte dos deputados eleitos pelos círculos regionais, ao invés de se pautarem pelos interesses das populações que os elegeram, a falta de cidadania da população em geral e a surdez das autoridades competentes para esta questão traduzem a pusilanimidade da nossa democracia. Os transportes são um direito fundamental dos cidadãos e a destruição do vale do Tua será um crime político, cultural e económico, feito com o aval do estado português.
Sem querermos obviar as diligências das poucas iniciativas cívicas e partidárias que alertam para esta infracção por via dos trâmites normais, pretendemos manifestar o nosso desprezo pela forma dissimulada com que as entidades envolvidas lidaram com a questão e com o interesse nacional. A escrita nas paredes das entidades responsáveis é uma escrita de confronto, de alerta e de dever, uma resposta possível à violência do ocorrido: a intencionalmente ridícula campanha de publicidade da EDP, a incúria da CP e da REFER, a promiscuidade dos Ministérios do Ambiente e das Obras Públicas e Transportes e a obediência partidária prometem sacrificar mais uma parte de Portugal a interesses ilegítimos e efémeros. Atribuímos o processo de destruição da linha e do vale do Tua à falência do conceito actual de democracia representativa; se a linha e o vale do Tua são valores nacionais com uma longa história e se a evidência da sua perda não é escutada por quem de direito, devem ser reclamados por todos os portugueses.
Terminamos dizendo basta e apelando à veemente defesa da linha e do vale do Tua por parte de todos os portugueses.
CARETOS LISBOA
Requiem
Viam a luz nas palhas de um curral,
Criavam-se na serra a guardar gado.
À rabiça do arado,
A perseguir a sombra nas lavras,
aprendiam a ler
O alfabeto do suor honrado.
Até que se cansavam
De tudo o que sabiam,
E, gratos, recebiam
Sete palmos de paz num cemitério
E visitas e flores no dia de finados.
Mas, de repente, um muro de cimento
Interrompeu o canto
De um rio que corria
Nos ouvidos de todos.
E um Letes de silêncio represado
Cobre de esquecimento
Esse mundo sagrado
Onde a vida era um rito demorado
E a morte um segundo nascimento.
Miguel Torga
Barragem de Vilarinho das Furnas
18 de Julho de 1976